Sonhando que estava a enfiar agulhas por baixo das unhas, Tereza traía-se a si própria porque revelava a Tomas que mexia às escondidas nas suas gavetas. Se fosse outra mulher, nunca mais lhe dirigiria palavra. Consciente disso, Tereza dissera-lhe: «Põe-me na rua!» Ora, ele não só não a tinha posto na rua como lhe pegara na mão e beijara a ponta dos dedos, já que, nesse momento, sentia a mesma dor que ela por baixo das unhas, como se os dedos de Tereza estivessem directamente ligados ao seu cérebro."
Milan Kundera, A Insustentável Leveza do Ser
Num daqueles dias, quando compareci ao encontro com a María José, ela perguntou-me porque razão a perseguia. Assegurei-lhe de que se tratava do que faria se fosse morrer no minuto seguinte. Continuámos a andar em silêncio até que ela se voltou para mim e disse com crueldade:
-Tu não é interessante para mim.
Eu continuei a andar ao seu lado, mas do mesmo modo que um frango sem cabeça continua a voar, ou seja, morto. Aquela frase partiu-me literalmente o coração. Uma faca ferrugenta não teria tido efeitos mais devastadores. Continuei, pois, a andar, por pura inércia até à casa dela e depois prossegui até à minha sabendo que não era necessário imaginar que ia morrer no minuto seguinte porque já estava morto. Entrei morto em casa e consegui chegar, morto, à casa de banho para ocultar a trágica situação à família. Ao olhar-me ao espelho reconheci no meu rosto todos os atributos de um cadáver. Tinha o nariz afilado e o rosto pálido como a cera. Sabia que o nariz afilado era um sintoma cadavérico porque o ouvira dizer à minha mão a propósito de uma fotografia do cadáver de Pio XII no jornal. Ela disse «nariz afilado» e «rosto cerúleo». Assim estava eu à frente do espelho, com o nariz afilado e o rosto cerúleo. Não se tratava de a vida ter perdido o sentido, é que já não havia vida."
Juan José Millás, O Mundo
Se não leram, leiam. E se, por alguma razão, não for a altura certa para os ler, porque há uma altura certa para ler um livro, tentem mais tarde, tal como fiz com o primeiro.
1 comentário:
uiuiui vou ler! O segundo, que o primeiro já li e é verdade, é preciso ser na altura certa.
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