25.9.10

agarra que é viciado

Quando à tarde, de volta a casa do cura, nos assentámos à mesa para tomar leite, a conversação caíu nos pesares e nas alegrias da vida. Então aproveitando o ensejo, não poupei recriminações aos homens de temperamento melancólico.
- Estamos continuamente a lamentar-nos por termos tão poucos dias bons e tantos maus: mas na minha opinião, queixamo-nos infundadamente. Se a nossa alma estivesse sempre aberta ao gozo da felicidade que Deus nos concede, teríamos depois a força necessária para suportar o mal quando se nos apresentasse.
- O pior - disse a mulher do pastor - é que não temos o coração nas mãos. Há coisas que dependem do corpo. E quando o corpo enferma a alma adoece também.
Concordei.
- Mas, nesse caso - acrescentei em seguida - devemos procurar aplicar qualquer remédio.
- Sou de igual parecer - disse Carlota. - Pelo menos, julgo que muito se pode obter por nossa própria iniciativa, e digo-o por experiência própria. Quando qualquer coisa me inquieta ou entristece, levanto-me de onde estou, vou dançar até ao jardim, canto duas ou três árias... e era uma vez o desgosto!
-Era exactamente isso que eu queria dizer - confirmei. - Acontece com a má disposição de espírito o mesmo com a preguiça, visto que temos para esta, tendências naturais; mas se temos força para reagir e nos reanimamos, o amor ao trabalho vence e achamos que a actividade nos dá um grande gozo. 
Frederica ouvira-me lentamente; Schmidt objectou novamente que ninguém pode ser senhor de s próprio nem dominar as próprias sensações.
Repliquei:
- Aqui trata-se de um sentimento desagradável, de que cada um deve querer defender-se; e quanto às forças morais, ninguém conhece até onde chegam as suas, antes de as experimentar. O desejo de um doente não será consultar todos os médicos, acatar e cumprir-lhes as prescrições, submeter-se ao seu tratamento por mais rigoroso que seja, para recobrar a saúde perdida?
Notei neste ponto que o pai de Frederica se esforçava por não perder as minhas palavras. Para que me ouvisse melhor, levantei a voz e prossegui, voltando-me para ele:
- Não falta quem pregue contra os vícios da humanidade; mas nunca ouvi que no púlpito alguém condenasse o mau humor.
-É aos que pregam nas cidade que compete fazê-lo - disse o velho. - Os homens do campo não sabem o que seja o mau humor; contudo, não seria talvez inútil pregar-lhes um desses sermões de tempos a tempos; pelo menos sempre seria uma lição para a minha mulher e para o nosso bailio.
Todos se riram do gracejo, e até ele próprio se riu também com gosto, a ponto de ser acometido de um forte ataque de tosse, que nos obrigou a interromper a conversação durante uns momentos.
Por fim Schmidt retomou a palavra:
- O sr. Werther chamou ao mau humor um vício. Parece-me um tanto exagerado.
- Um vício, sim, nada menos - respondi eu - se esse nome se pode dar ao que nos prejudica a nós e ao nosso próximo. Acaso não baste a impossibilidade em que nos encontramos de nos tornarmos mutuamente felizes? Será ainda necessário destruirmos uns ao outros os poucos prazeres que nos é permitido gozar? Mostre-me um homem de mau humor corajoso bastante para ocultar a sua melancolia, carregando sozinho o peso dela, para não perturbar a alegria dos que o rodeiam; não será antes um despeito interior da nossa própria insuficiência, um descontentamento de nós mesmos, sempre aliado à inveja excitada por uma louca vaidade? Não há ninguém que possa encarar com gosto a felicidade alheia quando essa felicidade não for obra nossa.
Carlota sorriu-se do calor que eu tomava na discussão, mas duas lágrimas que brilharam nos olhos de Frederica impeliram-me a continuar:
- Mal daqueles que abusam do predomínio que exercem sobre um coração puro para o privarem dos mais simples prazeres que por si gozaria! Não há dádivas nem favores que possam compensar essa felicidade, envenenada pela invejosa e cruel fantasia de um tirano! (...)

Werther, Goethe

1 comentário:

IN disse...

adorei*